quarta-feira, 12 de julho de 2023

heranças

 Há 16 anos um grupo de jovens decidiu que deveria trancar seus cursos universitários para fazer uma viagem pela América Latina. Eu era um desses jovens, que imaginava à época viver uma vida de liberdade na estrada, sem as restrições de uma rotina de trabalho que me pareciam frustrantes de mais. É curioso como muitas coisas podem mudar mas outras permanecem iguais por muito tempo, como se não mudassem mesmo. Eu ainda tenho essa visão sobre o trabalho e esse ímpedo por buscar uma certa liberdade que me dê tempo e qualidade de vida. Mas isso, obviamente, todos querem. Não podemos imaginar que alguém almeja ser explorado ou se explorar, sacrificando toda a vida como se faz normalmente. Assim, esse grupo de jovens, anacronicamente, repetiu a experiência de viver cada dia como se fosse o último à moda hippie. A experiência universitária tinha aberto as mentalidades, sedentas por sentido, para a busca de uma vida que valesse a pena. Essa experiência também mostrou os vícios acadêmicos, do movimento estudantil e sindicais que prometiam uma transformação radical da sociedade pela razão, estudo, luta e organização. Como se vivéssemos o próprio maio de 68 exigimos o impossível de forma realista. 

Meses antes estivemos em um protesto contra o governo Lula em Brasília, durante uma longa greve de professores com apoio estudantil. A experiência política foi importante, eu descobri que tinha gente pressionando o governo da esquerda para cumprir suas promessas, e isso não é qualquer coisa. Mas não dá pra igonar a força que isso tem, combinado com viagens de carona pelo Brasil. Apesar de poder voltar com o ônibus fretado pelo movimento grevista, mais de 20 esudantes, sem pressa de retornar à universidade paralisada, decidiram voltar do Distrito Federal de carona até Floripa, passando pela Chapada do Veadeiros. Enfim, a vida prometia aventuras e lutas, os horizontes se ampliavam e não voltariam mais àquilo que até então eu conhecia. O que muitos acham ser doutrinação de professores é muito mais que isso, é a erosão que a mediocridade de nossas vidas causa na vida de jovens que encontram saídas para escoar seus sonhos que se frustram e são reduzidos a buscar uma carreira de sucesso. Essa vida meíocre vai continuar produzindo criminosos, rebeldes e doenças a torto e a direito. 

No meu aniversário de 20 anos estavamos me preparando para a partida. Fizemos uma viagem de teste para Machu Pichu, para encontrar um outro grupo que tinha partido havia alguns meses de kombi. Depois, juntamos tudo num grupo maior. Chegamos a ser 9 contando um uns agregados que fomos catando pelo caminho. Foram muitos lugares, muitas pessoas, muita solidariedade sem a qual nós não conseguiríamos comer e domir com algum conforto. Hoje sempre dou carona por que sei o tempo que pode demorar até que alguém pare pra você na estrada. Se possível recebo alguém em casa, porque sei o valor de um abrigo no meio de uma pernada dessa. São boas memórias. Mas o mais importante é que isso provavelmente me abriu percepções que antes eu não tinha. Nunca mais pude viajar assim pra tantos lugares e com esse tempo. Talvez nunca mais possa. Temos amigos na Bolívia, esses são os que mais mantenho contato, na Colômbia e na Venezuela. Fiz um amigo peruano muito depois, provavelmente porque já havia estado no Peru e queria me aproximar dele, e ele talvez também se sentiss mais confortável com alguém que sabe de onde ele vem. Vi como os Bolivianos são indígenas, pude ver uma sociedade indígena gigantesca ainda dominada pelos descendentes de espanhóis, é uma divisão racial muito evidente. Comecei a me dar conta dessas mesmas contradiões no Brasil.

Na Bolívia vi pela primeira vez uma manifestação de massa. Depois daquilo só vi outra em 2013 no Brasil e nunca mais. Talvez muitos dos que viram no Brasil tenham esquecido pelo extraordinário que foi, como um sonho que se esquece. Mas eu vi duas vezes, sei que acontece de vez em quando. No Peru vi como um país é tão diferente de sul ao norte e lindas belezas naturais. No Equador, num pedaço tão pequeno, belezas incríveis e um vulcão. Na Colômbia, conheci um povo muito parecido ao brasileiro, festivo e sociável. É provável que tenha alguma relação com a influência africana. Vi também o medo e a tensão de uma querra de décadas que divide o país. Essa mesma tensão encontrei na fronteira com a Venezuela. Pelo pouco tempo que estive na Venezuela, vi uma sociedade organizada e consciênte dos conflitos de classe que existem. Lá tive um surto psicótico, herança das minhas experiências psicodélicas, esse foi o marco pra fase seguinte da minha vida, muito mais sóbria e pé no chão, saudosa da liberdade, do artesanato e do palhaço que descobri em mim. Segue algumas fotos de amigos que encontrei no email...